
Ele é um exemplo de rara sabedoria, de inspiradora civilidade política, que está muito acima das clivagens que nos desunem.
Pepe Mujica cultiva flores.
É seu primeiro e principal ofício, que aprendeu com sua mãe. Desde menino, tem uma conexão visceral com a terra, com a vida. Com a vida em todas as suas formas. Ao longo dos mais de 50 anos da minha vida pública, estive diversas vezes com Dom Pepe, em várias ocasiões, quando ele foi ministro, presidente do Uruguai, senador ou como liderança da Frente Ampla. Em todas, algo me marcou, pelas atitudes e intervenções diferenciadas e improváveis. E, neste momento, histórico, a trajetória de vida de Pepe continua sendo inspiradora e fundamental.
Quando saiu das masmorras em que fora colocado pela ditadura uruguaia, Mujica se dedicou, por vários anos, a trabalhar na chácara de sua mãe.
“Saí da prisão com a ideia fixa da chácara”, conta ele. Saiu com a obsessão de voltar à terra. Mergulhando nela suas mãos, Mujica reconectou-se, de forma definitiva com a vida.
Precisava disso. A ausência de vida, por longos 14 anos, transformou Mujica em um amante incondicional da vida.
Na imensa e terrível solidão da prisão, naquele vazio de orfandade, de desumanidade, aprendeu as lições que o libertaram. As lições que ele agora procura ensinar ao mundo.
Em primeiro lugar, a lição de que a busca incessante por riqueza e por bens materiais pode ser uma prisão.
“Aprendemos na orfandade das masmorras que com pouco se pode ser feliz, e se com isso você não consegue, você não consegue com nada.“
“Passei 14 anos na prisão (…) Na noite em que me deram um colchão eu me senti confortável, aprendi que se você não consegue ser feliz com poucas coisas, não será feliz com muitas coisas.”
Mujica acrescenta que não é pobre, é leve, vive com pouco porque quer ser livre. Pobre é aquele que precisa de muito.
“Não sou pobre, sou sóbrio, tenho bagagem leve, vivo com o suficiente para que as coisas não roubem minha liberdade.”
Assim, em Mujica a relativa pobreza, a modéstia de posses, a austeridade, não são demagogia política. São algo autêntico, existencial, de quem busca a riqueza na liberdade, na solidariedade e nos mais altos valores humanistas.
Isso o torna incorruptível. Incorruptível por natureza. Incorruptível às tentações maquiavélicas do Poder; incorruptível às tentações do enriquecimento fácil.
Como disse ele, se alguém quiser enriquecer, não tem problema, que vá para a área privada, para o comércio, para a indústria.
Mas serviço público é servir ao público. Não é uma simples profissão. É missão. É compromisso com os outros, especialmente com os que têm menos. É compromisso com a humanidade comum que nos une.
A outra grande lição que Mujica aprendeu foi a da sacralidade da vida.
“Aprendemos sem livros, uma forma de olhar se você quiser um pouco panteístas. Na prisão, gostávamos de aranhas, gostávamos de formigas, porque eram os únicos seres vivos que tínhamos, na solidão de nossas masmorras.”
Esse amor panteísta a toda forma de vida, essa dedicação à vida de todos, distingue os grandes homens e os grandes estadistas. Gandhi, Mandela (outro que se transmutou na experiência carcerária) e Lula, por exemplo, estão também entre esses poucos políticos que amam, de verdade, a vida presente em todas as vidas.
Como ele mesmo afirmou em seu magnífico discurso ante a ONU: “Pense que a vida humana é um milagre. Que estamos vivos por milagre e nada vale mais do que a vida. E que o nosso dever biológico é, acima de tudo, acima de todas as coisas, respeitar a vida e promovê-la, cuidar dela, e entender que a espécie humana é o nosso “nós”.
E essa é uma lição profundamente transformadora. Ao se entender a importância de uma formiga, de uma aranha, compreende-se, com facilidade, com clareza, a importância de cada ser humano, de cada semelhante.
Entende-se, sobretudo, que política é a arte maior de cuidar da vida.
É algo muito semelhante a cultivar flores, belas e frágeis, a melhor imagem da vida.
Uma terceira grande lição que Mujica aprendeu foi a da necessidade de se ter contato consigo mesmo.
“Quando fiquei preso sem livros – fiquei sete anos sem ler – minha cabeça começou a girar.” Ele “ruminou” sobre o que havia lido em sua vida anterior. “Eu sempre digo que temos que falar de dentro, mas, claro, agora estamos na era da tecnologia da informação, as pessoas obtêm informações como podem e, uh, uh, uh, lá vamos nós. Mas nenhuma viagem é feita lá dentro.”
De fato, vivemos, num mundo hiperconectado, no qual “viajamos” o tempo todo, em todos os momentos, “para fora”. Nesse turbilhão digital, nos esquecemos de falar com o que está dentro de nós.
Essa conexão com nós mesmos, no entanto, segundo Mujica, é essencial para que nos entendamos, entendamos o semelhante, entendamos o mundo a partir da nossa própria humanidade.
Temos de mergulhar em nós mesmos para entender, de verdade, o que está fora de nós.
A última grande lição de Mujica, talvez a maior, e a mais importante para o mundo de hoje, seja a da rejeição do ódio e a aceitação do amor.
Diz ele: “Não cultivo ódio no meu jardim há décadas. O ódio acaba nos deixando estúpidos porque nos faz perder a objetividade diante das coisas. O ódio é cego como o amor, mas o amor é criativo, e o ódio nos destrói.”
Essa é lição dura de apreender para um homem que quis mudar o mundo e foi derrotado e esmagado por uma ditadura, que o colocou em suas masmorras por longos 14 anos de muito sofrimento.
Mujica teria todos os motivos para cultivar o ódio, mas continua, pacificamente, cultivando flores.
Por tudo isso, as lições que Mujica aprendeu são lições para todos nós. Lições que são seu legado imortal, sua grande riqueza, que nós herdaremos.
Mujica é um exemplo de rara sabedoria, de inspiradora civilidade política, que está muito acima das clivagens políticas que nos desunem.
Sua pequena e modesta chácara transformou-se no centro do mundo, numa meca para todos aqueles que buscam inspiração na construção de um mundo mais fraterno, mais solidário, com um compromisso maior com a vida.
Mujica, austero, dirige um pequeno e simples fusquinha azul. Um carrinho velho e popular, que ninguém associa a um líder, a um ex-presidente.
Mas ele se sente feliz com esse singelo carrinho.
Se pudesse, Mujica colocaria todos nós em seu fusquinha azul e nos conduziria a um lugar muito melhor. Um lugar mágico, que está dentro do seu coração.
Caberíamos? Caberíamos, pois no fusquinha azul de Mujica cabe toda a Humanidade. Com sobras.
Mujica está deixando a vida que tanto ama, de que tanto cuida.
Mas ele nunca morrerá, de fato. Como no fantástico poema de Francisco de Quevedo “Amor constante além da morte”, ele será cinzas, mas cinzas com sentido, e se tornará pó, mas pó apaixonado.
Nesse dia, todas as flores do mundo desabrocharão em sua homenagem.
Aloizio Mercadante é presidente do BNDES