
Presidente do BNDES denuncia guerra comercial como estratégia improvisada e perigosa que rompe com a lógica da cooperação global.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo, o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, faz um alerta contundente sobre os riscos da política externa do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reeleito em 2024. Segundo Mercadante, a nova escalada tarifária contra a China é mais do que uma ação isolada: representa o colapso da ordem mundial baseada em regras multilaterais e o surgimento de um novo tipo de império, sustentado exclusivamente pela força.
Mercadante compara o impacto das medidas atuais às consequências da Lei Tarifária Smoot-Hawley, de 1930, que agravou a Grande Depressão ao provocar uma série de retaliações comerciais. “Estamos dirigindo por uma estrada escura, sem faróis”, resume o estrategista-chefe da MetLife Investment Management, Drew Matus, citado no texto para ilustrar o grau de incerteza gerado pelo tarifaço norte-americano.
Previsibilidade rompida e mercados em alerta
As idas e vindas do governo Trump em relação à política comercial, pontua Mercadante, tornam impossível qualquer planejamento econômico de médio e longo prazo. A agressão tarifária, mesmo se restrita ao conflito com a China, já provoca desorganização em cadeias globais de suprimentos e eleva os riscos de desabastecimento, inflação e recessão. “Mesmo em um cenário otimista, talvez ingênuo, o prognóstico é muito ruim”, afirma.
Com Estados Unidos e China respondendo juntos por cerca de 45% do PIB mundial, o autor considera inevitável que o confronto gere efeitos sistêmicos. Trump, afirma Mercadante, age sem estratégia, com improvisações que comprometem o funcionamento da economia global e o papel histórico dos EUA como fiadores da ordem internacional.
O retorno do império pelo uso da força
No centro da crítica está a ideia de que Trump não busca apenas proteger empregos ou equilibrar as contas externas. Seu objetivo é mais ambicioso — e perigoso: “recriar uma hegemonia unilateral pela força”. Ao abandonar o multilateralismo, Trump rompe com a lógica de cooperação internacional construída após a Segunda Guerra e tenta reinstaurar uma ordem hobbesiana, baseada na imposição.
A ideia de “reciprocidade tarifária” aplicada indistintamente — inclusive a países pobres como o Lesoto — revela, segundo Mercadante, o desprezo pela equidade e pelo direito ao desenvolvimento. “Trump abandonou a fala mansa e o soft power. Aos berros, brande um ‘big stick’ de ameaças econômicas, políticas e militares.”
Mercadante também denuncia a tentativa de Trump de transferir parte do custo de seu desequilíbrio fiscal aos outros países, via aumento de tarifas. Com a dívida pública dos EUA já em 120% do PIB, os cortes prometidos por Elon Musk à frente do Doge (Departamento de Eficiência Governamental) são vistos como fantasiosos e baseados em cálculos frágeis. “A meta de cortar US$ 1 trilhão em gastos federais sem afetar programas sociais é economicamente inviável.”
China acelera desacoplamento e liderança tecnológica
A China, por outro lado, responde de maneira coordenada e estratégica. Reduziu sua exposição à dívida norte-americana, acelerou a compra de ouro e lidera o movimento de desdolarização, que abala um dos principais pilares do poder dos EUA: o dólar como moeda de reserva global.
Ao mesmo tempo, Pequim consolida sua liderança em setores estratégicos como inteligência artificial, energia renovável e microeletrônica. “A China não se tornou o que é com protecionismo tosco, mas com uma política de Estado articulada e voltada à inovação”, destaca Mercadante. Desde 2005, a inovação foi alçada a prioridade nacional, com metas claras de protagonismo tecnológico até 2050.
O impacto sobre o Sul Global
O autor enfatiza que a imposição de regras unilaterais por parte dos EUA atinge com mais força os países mais frágeis, que perdem espaço para se desenvolver. A “bilateralização” das disputas, na prática, equivale à simples imposição. “A reciprocidade exigida por Trump iguala os desiguais e fere de morte o direito ao desenvolvimento.”
O exemplo do Panamá, citado por Mercadante, revela o método de chantagem econômica. As negociações perdem o sentido diante da disparidade de poder e da postura imperial. Para o autor, o novo governo dos EUA representa um retrocesso histórico: “É a volta a um colonialismo que ameaça até mesmo com a invasão de territórios de outros. Parece que voltamos ao século 19. Não deverá ir longe.”
Democracias sob teste
Mercadante encerra o artigo com uma reflexão sobre os riscos desse cenário para o futuro das democracias. A política agressiva de Trump gera um ambiente de instabilidade e insegurança, que pode fragilizar instituições e abrir caminho para autocracias.
“A salvação talvez possa vir de uma grande concertação internacional”, escreve. E cita um provérbio chinês: “Se houver luz na alma, haverá beleza na pessoa… Se houver ordem na nação, haverá paz no mundo.” Para Mercadante, Trump “parece não ter luz na alma”, ao contrário de líderes como o presidente Lula, que seguem apostando no diálogo, na cooperação e em uma nova ordem mundial baseada na justiça e no equilíbrio.
Fuente: Brasil247